O sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente. Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão
Guimarães Rosa
Foi em maio de 1952 que Guimarães Rosa (1908-1967) trocou o terno e a gravata borboleta pela jaqueta e chapéu de couro. Aos 44 anos, depois de um longo tempo vivendo como diplomata no exterior, o já famoso autor de Sagarana voltava à sua terra natal, a pacata Cordisburgo (MG), a 114 km de Belo Horizonte, em busca de inspiração literária.
“Creio que será uma excursão interessante e proveitosa, que irei fazer de cadernos abertos e lápis em punho, para anotar tudo o que possa valer, como fornecimento da cor local, pitoresco e exatidão documental, que são coisas muito importantes na literatura moderna”, escreve o autor, meses antes, em carta para seu pai.
Médico de formação, Guimarães Rosa já estava acostumado com as andanças pelo interior mineiro. Mas agora era diferente.
Desta vez, acompanharia um grupo de tropeiros da fazenda Cirga, propriedade do seu primo Chico Moreira em Três Marias, até a fazenda São Francisco, em Araçaí, num percurso de dez dias.
A comitiva levaria 300 cabeças de boi por 240 quilômetros de trilha, atravessando pastos, beiras de estradas, casinhas de pau a pique, buritis e discretos cursos d´água.
Ao partir, o homem que falava cinco idiomas não teve dificuldade em se equilibrar no lombo de uma mula. Ele já se reconhecia como alguém do sertão.
O Vaqueiro Rosa
A famosa expedição de Guimarães Rosa por Minas Gerais trouxe os primeiros elementos para os livros que escreveria nos anos seguintes, como Corpo de Baile (1956), Tutaméia (1967) e Grande Sertão: Veredas (1956), considerado por muitos a maior obra da literatura brasileira.
“De todas as viagens que ele fez, acho que essa teve um peso muito grande. É uma volta às origens. Depois dela, ele escreveu livros que contam a essência do homem desse sertão e transforma isso em algo que parece universal”, diz o historiador Ronaldo Alves, que trabalha no Museu-Casa Guimarães Rosa, em Cordisburgo. Em 2014, o local está completando 40 anos de existência.
“Guimarães Rosa entra na viagem de verdade. Ele não teve um tratamento diferenciado e fazia questão de conviver com todos. Foi uma viagem num espaço físico, mas também no universo das pessoas. Ele planejou vivenciar todas essas experiências, sensações e dificuldades. Imagine ficar dez dias no lombo de um burro, dormindo no chão?”, conta o historiador.
Homem letrado e da cidade, o viajante não gostava de ser chamado de “doutor” e preferia ser o “Vaqueiro Rosa”.
Assim como os outros, acompanhava a boiada, tomava banho em córrego, acendia o cigarro num toco de madeira em brasa e pousava no improviso das fazendas, chegando a pernoitar dentro de uma forma de rapadura. Os registros fotográficos da viagem foram feitos pelo fotógrafo Eugênio Silva, da antiga revista O Cruzeiro.
Exposição no Museu Casa Guimarães Rosa com as fotos tiradas por Eugênio Silva, realizada em 2012, quando a viagem completou 60 anos (Foto: Museu Casa Guimarães Rosa)
Quem via Guimarães passar pelas porteiras das fazendas com a comitiva notava algo diferente em sua indumentária. Durante a travessia, amarrado ao pescoço, ele exibia um pequeno caderno em espiral.
Para anotar impressões e as histórias que ouvia, Rosa utilizou sete cadernetas, todas preenchidas com observações detalhistas sobre a paisagem mineira e seus animais, as cantorias de violas, os nomes de plantas e flores, o significado de hábitos, expressões e o modo de falar dos vaqueiros. Alves conta que, dessa forma, Rosa foi fundo buscar uma forma de retratar a essência do homem do sertão.
Quando retornou ao Rio de Janeiro, o escritor datilografou todo esse material, separando o conteúdo por temas. As anotações reunidas virariam dois diários, batizados pelo autor de “A Boiada 1” e “A Boiada 2”.
Em entrevista, Guimarães Rosa perguntou ao jornalista Pedro Bloch: “Você conhece os meus cadernos, não conhece? Quando eu saio montado num cavalo, por minha Minas Gerais, vou tomando nota de coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Cada pássaro que voa, cada espécie, tem voo diferente. Quero descobrir o que caracteriza o voo de cada pássaro, em cada momento. Não há nada igual neste mundo. Não quero palavra, mas coisa, movimento, voo”.
A comitiva de Rosa
Além do escritor, oito vaqueiros faziam parte da comitiva. Bindóia tocava o berrante como ninguém. Zito guiava a tropa e, nas paradas de descanso, cozinhava as refeições com iguarias apelidadas por Rosa de “entalagato”.
Zito tinha prosa fácil e conversava a maior parte do tempo com o autor, que o considerava um dos sujeitos mais inteligentes que conhecera. À noite, quando o dia se ia, o matuto mineiro escrevia versos à luz da fogueira. Era um poeta.
No livro Tutaméia (1967), Rosa homenageia Zito no prefácio, transcrevendo trechos de conversas com o vaqueiro. Num deles, o escritor queria a opinião do sertanejo sobre uma história que tinha em mente e que mostrava a maldade dos homens. Zito, que acredita que os livros devem trazer coisas boas, e responde:
— O senhor ponha perdão para o meu pouco-ensino… — olhava como uma lagartixa – A coisada que a gente vê, é errada… Acho que… O borrado sujo, o senhor larga de estrada, em indústrias escritas isso não se lavora. As trapalhadas, o senhor exara dado desconto, só para preceito, conserto e castigo, essas revolias, frenesias… O que Deus não vê, o senhor dê ao Diabo.
Outro vaqueiro do grupo também inspirou o autor. Com jeito de cowboy dos filmes de faroeste, Manuelzão (Manuel Nardi), o capataz de compadre Chico, era reconhecido pela coragem e tinha fama de bom atirador. Diz uma lenda que nenhum cavalo pulava com ele, por causa de reza brava.
Depois de escutar os causos que o vaqueiro adorava contar, Rosa se inspirou nele para criar o protagonista da novela Uma História de Amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, da trilogia Corpo de Baile.
Na trama, um velho vaqueiro que nunca assentou em lugar algum resolve formar família e, como promessa à mãe, constrói uma pequena capela numa fazenda (assim como o Manuelzão da vida real).
É no sertão e suas veredas que circulam uma extensa galeria de personagens de Guimarães Rosa, como o ex-jagunço Riobaldo de Grande Sertão: Veredas – que dizia que “o sertão está em toda parte” –, Joca Ramiro, o garoto Miguilim, entre tantos outros.
A imaginação criadora de Guimarães Rosa transformava os registros de sua viagem pelo sertão em literatura, fornecendo elementos únicos para a construção de sua obra, que no futuro, iria refletir grandes temas da humanidade. Uma aventura que só não foi maior que seus livros.
O MUSEU E OUTROS LUGARES DE ROSA EM Cordisburgo
A pequena cidade mineira sabe bem manter a memória de seu mais ilustre filho. Referências a Guimarães estão espalhadas pela cidade, em nomes de ruas e lojas, a também na Praça Miguilim (local que também aparece em suas obras) onde, em 2012, foi inaugurada a estátua do escritor, feita pelo artista Leo Santana (o mesmo da estátua de Drummond no Rio). Ali, ela divide espaço com vaqueiros e um cachorro retratados no livro Grande Sertão – Veredas.
O caminho percorrido pelo escritor e seus companheiros hoje abriga o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, local que seja você admirador de Rosa ou da vida sertaneja deve visitar na passagem por Cordisburgo.
Há ainda a estação de trem da cidade, que aparece no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras Estórias, e o Museu-Casa, onde Rosa passou boa parte da infância.
Localizado em uma casa de estilo colonial, o museu, embora pequeno, tem um acervo rico. Manuscritos de livros, primeiras edições de livros, móveis originais que foram restaurados, fotos antigas entre outros objetos ligados à vida e obra de Guimarães.
Além disso, guarda também uma réplica da venda que o pai do escritor, Seu Fluoruardo, ou Fulô para os mais chegados, mantinha na cidade.
Cordisburgo também é conhecida pelas grutas. Estima-se que existam 25 na região. Dessas, apenas a gruta do Maquiné é aberta para visitação. Guimarães conheceu o local e ficava impressionado com seu tamanho.
“E, mais do que tudo, a Gruta do Maquiné, tão inesperadamente grande, com seus sete salões encobertos, diversos, seus enfeites de tantas cores e tantos formatos de sonho, rebrilhando de risos de luz. Ali dentro a gente se esquecia numa admiração esquisita, mais forte que o juízo de cada um, com mais glória resplandecente do que uma festa, do que uma igreja”, comentou Rosa sobre a gruta, a quem dedicou ainda um poema com o nome do local.
Flores de pedra, cachoeiras de pedra, cabeleiras de pedra, moitas e sarças de pedra, e sonhos d’água, congelados em calcário. Andares superpostos, hieroglifos, colunas, estalagmites subindo para estalactites, marulhos gotejando das pontas rendilhadas: – Plein!… ritmos do Infinito… – Plein!… e séculos medidos por milímetros…
| trecho do poema Gruta do Maquiné, de Guimarães Rosa
Ainda com relação a Guimarães, quem visitar a cidade no final do mês de julho encontra uma leva de admiradores do escritor. Nesse período do ano, Cordisburgo recebe a Semana Roseana, que realiza palestras, encontros, cinema, caminhadas e outras atividades ligadas ao universo de Rosa. Mais informações sobre essa semana você obtém entrando em contato com o museu do escritor.
A estátua de Guimarães Rosa em Cordisburgo (MG), sua cidade natalA casa onde Guimarães Rosa passou a infância e que hoje abriga o museu sobre a vida e obra do escritor (Divulgação)A estação de trem de Cordisburgo, um dos cenários que também aparece na obra de Rosa (Reprodução)