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Autores argentinos discutem dificuldade de entrarem no mercado editorial brasileiro


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RIO - No fim do ano passado, o descabelado ilustrador argentino Federico Lamas, 34 anos, tomou um avião em Buenos Aires, desceu no Galeão e foi direto para a antiga fábrica da Bhering, onde acontecia a festa de lançamento da segunda edição de seu primeiro livro, “Vá para o diabo!”, uma espécie de romance ácido em 3D. Lançada no Brasil pela Bolha Editora — que tem por perfil lançar títulos tão “despenteados” quanto Lamas —, a obra tinha esgotado sua primeira edição, de mil exemplares, só com a venda em feiras alternativas.

Se o feito já seria raro para romances nacionais (e tradicionais), é ainda mais fortuito para um livro de narrativa essencialmente visual — quase não há texto, só ilustrações — e de um autor argentino independente. Lamas ficou tão surpreso com o resultado que aproveitou para trazer na mala um novo título, “Picante de língua”, um ensaio em forma de zine que mistura gastronomia punk, política e erotismo.

Na mesma época, outro autor argentino, também independente, teve seu primeiro livro lançado no Brasil, apesar de ser velho conhecido das feiras literárias latino-americanas: o poeta Fabián Casas, 48 anos. O volume de contos “Os Lemmings e outros”, publicado na Argentina em 2006, foi pinçado pelo curador paulistano Joca Reiners Terron para ser um dos destaques da coleção Otra Língua, da editora Rocco, que desde meados do ano passado vem publicando títulos de autores latinos pouco conhecidos por aqui.

“O Brasil intimida o resto da América Latina”

Enquanto isso, a Alfaguara aposta no lançamento de “Falar sozinhos”, novo romance do também argentino (e premiado) Andrés Neuman, 36 anos, um dos selecionados pela revista inglesa Granta como um dos 22 melhores jovens escritores latino-americanos em 2012. Para um mercado editorial que demonstra pouco interesse nas novidades hermanas, a presença de nomes como esses nas prateleiras das livrarias brasileiras chama a atenção dos próprios autores:

— O Brasil intimida um pouco o resto da América Latina. É um país grande, que tem produção editorial para se abastecer, há a diferença de idioma, além de uma falsa ideia de que parece não se interessar pelo resto. Mas aos poucos está havendo uma mudança, não só com autores do mainstream. Acredito que no mercado independente um autor possa ser mais preciso. Se eu vender, vamos dizer, três mil livros, mas distribuídos de maneira mais precisa, onde há público para este livro, é, para mim, o equivalente a vender 20 mil em muitas livrarias — diz Lamas, que, por causa das ilustrações quase alucinógenas de sua obra, chamou a atenção do grupo Bonde do Rolê, que o convidou para fazer a arte da capa do álbum “Tropical bacanal”, a ser lançado neste ano.

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Ilustrado com uma técnica que dá a ilusão de 3D, “Vá para o diabo!” é o hit da Bolha Editora. O livro conta a história de um casal em crise, que pode ser lida da forma tradicional, correndo os olhos pelas páginas, ou de outra completamente diferente, usando a pequena lente vermelha que acompanha o volume, chamada pelo autor de “visão infernal”. Através dela, a trama ganha novos personagens, sensações e acabamentos.

— O livro tem um efeito infernal bastante universal, pode ser só algo gracioso, mas também obscuro. As pessoas descobrem sozinhas como acontece a leitura, é quase um jogo. Já estou na quarta edição na Argentina, publicadas por mim mesmo, e comecei a distribuir pouco a pouco em outros países. Este que trouxe, “Picante de língua”, é uma investigação: eu fazia residência artística na Bolívia em 2012 quando descobri um prato típico que leva esse nome gracioso. Pesquisei a expressão e vi que também era um eufemismo para sexo oral, e fui descobrindo histórias correlatas. Compilei tudo de maneira enciclopédica e editei como um zine — detalha Lamas.

Acompanhado há anos por escritores como Xico Sá e Joca Terron, que não se furtam em citá-lo em entrevistas e conferências, e considerado pelo escritor Carlito Azevedo como um dos mais importantes autores contemporâneos da Argentina, com 12 livros publicados, Fabián Casas não tinha sequer uma obra traduzida para o português até o lançamento de “Os Lemmings e outros” pela Rocco, com contos que passeiam autobiograficamente pelos personagens de seu bairro natal, Boedo. Essa não é, no entanto, uma questão que aflige o autor de versos como “De ese tiempo me queda/ un beso frío en el hígado/ y cierta arqueología/ en la paranoia” (do poema “Comics”, disponível em seu site).

— Durante 20 anos escrevi em silêncio no meu país, sem que ninguém prestasse atenção, e isso foi fundamental para que eu pudesse estudar grandes poemas e me meter embaixo deles como se mete um mecânico debaixo de um automóvel para ver como funcionam. Assim, ainda que eu tivesse leitores no Brasil, entre eles alguns grandes escritores, não me preocupava o tempo que demoraria ter um livro em edição brasileira. Acredito que a literatura, quando tem que aparecer, aparece. Há milhares de pessoas neste momento escrevendo oralmente o Sermão da Montanha em bares, escritórios, pontos de ônibus, favelas e praias. O que é necessário é ter o ouvido atento para escutá-los — atesta o poeta, que prefere ler a escrever.

Um dos que Fabián Casas gosta de ler — e que considera um autor notável — é Andrés Neuman, outro hermano que teve seu último romance recém-publicado no país, “Falar sozinhos”.

Formas de falar sozinhos

Radicado na Espanha, onde dá aulas de literatura latino-americana, Neuman acredita que a falta de interesse pelo mercado editorial latino, como um todo, entre países vizinhos, seja uma mistura de fatores econômicos com culturais: para ele, além de haver pouco interesse em estabelecer pontes de comunicação entre culturas próximas, o continente tardou muito em reconhecer seu próprio potencial:

— Por um lado, o mercado editorial está interessado em best-sellers. Por outro, a América Latina demorou a perceber as infinitas possibilidades que têm uma boa sinergia interna. E isso é mais culpa nossa, de nossos próprios hábitos culturais. Me parece especialmente triste a ignorância que a comunidade de leitores de espanhol tem dos autores em português. Acredito que o contrário ocorra menos, porque o leitor brasileiro já tem consciência de que ao seu redor se fala outra língua — defende Neuman, que retribui o encanto pela literatura de Casas (“Tem poemas extraordinários, bem-humorados e filosóficos”) e que, ainda que não conheça os livros de Federico Lamas, é fascinado por suas ilustrações (“Tem um website lindo”).

Em “Falar sozinhos”, a trama acompanha uma morte por três pontos de vista: o do pai, o da mãe e o do filho de 10 anos. São também três narrativas completamente distintas: a do pai tem a falta de fôlego dos desesperados; a da mãe avança pela intertextualidade — a personagem é professora de literatura, está o tempo todo a citar autores e livros; e a do filho assume o ritmo infantil de uma redação escolar.

— As vozes de Elena, Mario e Lito refletem três intimidades diferentes, mas também as três formas que temos de falar sozinhos: o pensamento, a oralidade, a escrita. De nada serve o fato de os personagens terem experiências diferentes se o autor os faz falar e respirar da mesma maneira — descreve Neuman, animado com os primeiros retornos que o romance teve no Brasil. — Construí cada personagem com temor e muitas dúvidas. Tratando de escutar suas vozes. Averiguando suas sintaxes, a respiração de cada um. Para mim, se não há voz, não há personagem. Me diverte pensar que um romancista é como um detetive particular que trabalha todos os dias seguindo uma gente que não existe. E, por final, por insistência da imaginação, os personagens começam a existir.


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